Proposta da ANP para regulação de gasodutos representa ameaça de conflito federativo

A boa qualidade regulatória tem como premissas a segurança jurídica, o aperfeiçoamento do arcabouço regulatório e o incentivo ao bom funcionamento dos mercados. Na indústria do gás natural e biometano, não é o que temos observado.

Prova disso é uma recente minuta da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), ora em Consulta Pública [01/2025], com o objetivo de estabelecer uma resolução para definir a classificação dos gasodutos de transporte.

O que a princípio parece ser uma discussão ordinária, conduzida pela agência federal, pode ter como resultado uma indesejada ameaça de conflito federativo.

Mas, antes de comentar a minuta, vale voltar a 2009.

Um breve histórico

A cada vez que surge uma nova Lei do Gás, temos a sensação de que jamais teremos as soluções necessárias para o bom desenvolvimento do mercado. Assim foi em 2009, com a publicação da Lei Federal 11.909, que levou quase 10 anos para ter sua regulamentação pela ANP.

Naquele período, a maior parte das questões seguiu indefinida ou era objeto de regulamentos vagos e sujeitos a múltiplas interpretações.

Mas pelo menos uma coisa era certa: a atividade de transporte de gás, e a respectiva competência da ANP, encerrava-se no ponto de entrega de gás à concessionária, onde tinha início, de forma inequívoca, o serviço local de gás canalizado, sem intervenções nas competências estaduais.

Anos depois, quando já se discutia o projeto da chamada Nova Lei do Gás, passamos a ponderar o que seria melhor: conviver com as deficiências da lei até então existente ou arriscar mais 10 anos de incertezas com a edição de uma nova lei?

Veio a chamada Nova Lei do Gás, a Lei 14.134, sancionada em abril de 2021, sob influência de diversos grupos, que prometeram 50% de redução no preço do gás ao usuário final, investimentos de U$31 bilhões de dólares/ano e 4 milhões de novos empregos.

O marco aprovado incluiu alguns comandos importantes, mas trouxe outros desnecessários e afrontosos à competência dos estadosda federação para regular os serviços locais de gás canalizado.

Entre eles, o artigo 7º trazia a temerária possibilidade de a ANP vir a classificar gasodutos como “de transporte” com base em parâmetros de pressão, extensão e diâmetro.

Não poderia dar em coisa boa.

Nada se disse, explicitamente, sobre os gasodutos de distribuição, mas houve quem interpretasse o artigo 7º da Nova Lei do Gás como uma brecha para uma classificação dos gasodutos estaduais por diferença – isto é, ao se estabelecer os limites para os dutos de transporte, automaticamente estaria se criando um limitador também para os dutos de distribuição.

No entanto, como a Lei Federal não poderia avançar sobre a competência constitucional dos estados, a questão permanece em aberto – pelo menos por enquanto.

Regulamentação da classificação de gasodutos de transporte
Em 2023, dois anos depois da publicação da Lei 14.134/2021 (Nova Lei do Gás), a ANP realizou um workshop para ouvir dos interessados um conjunto de questões sobre a classificação dos gasodutos.

Foram quase outros dois anos para que a ANP publicasse as contribuições do workshop e trouxesse uma Avaliação de Impacto Regulatório (AIR), abrindo uma Consulta Pública sobre sua proposta de regulamentação; sem qualquer análise crítica ou juízo de valor em relação às contribuições recebidas.

O AIR em questão não se atém ao real impacto econômico da classificação proposta, principalmente para todos os estados da federação, nem mesmo aos enormes custos decorrentes aos usuários, aumentando as incertezas sobre as redes implantadas no passado, e sequer demonstra a necessidade de promover uma intervenção.

Todos estes preceitos são reconhecidos não apenas como boa prática regulatória, mas definidos pelo Decreto 10.411/2020 como requisitos para o relatório de AIR, que em seu artigo 2 º inciso ll considera a regulação de baixo impacto quando:

a) não provoque aumento expressivo de custos para os agentes econômicos ou para os usuários dos serviços prestados;

Logo, o documento parece baseado na suposição de um País onde somente a regulação federal deva prevalecer, confrontando um condicionante básico do setor de gás canalizado: não existe hierarquia da regulação federal em relação à estadual, pela própria definição constitucional.

É justamente esse pressuposto que é contrariado na minuta da Consulta Pública 01/2025, em que se vê uma proposta equivocada de Resolução sobre a classificação dos gasodutos.

Vejamos, como exemplo, trechos da proposta da ANP em sua minuta de Resolução:

IV – O gasoduto com origem ou destino em um gasoduto de transporte e interligado a outra instalação dutoviária diferente de gasoduto de transporte será considerado gasoduto de transporte se o diâmetro nominal de sua tubulação for igual ou superior a 8 polegadas ou sua pressão de projeto for igual ou superior a 36,5kgf/cm2, independentemente da extensão;

§ 2º Nos casos em que se observar mais do que um duto conectado às instalações de origem elencadas nos incisos I a V do caput, deverão ser considerados, para efeito da avaliação dos critérios de diâmetro nominal de sua tubulação e de pressão nominal de projeto, os valores das somas de diâmetro das tubulações e de pressões de projeto.

Em resumo: a resolução proposta pela ANP, e em consulta pública, passaria a classificar como gasodutos de transporte instalações estaduais de apenas 8 polegadas, de qualquer extensão.

Caso exista mais de uma instalação a partir de um gasoduto de transporte, os diâmetros se somariam; por exemplo: dois gasodutos de 4 polegadas já seriam considerados como “de transporte”.

Em sua proposta, a ANP considera, por exemplo, que dois gasodutos de 4 polegadas equivalem a um gasoduto de 8 polegadas, quando, na realidade, o gasoduto de 8 polegadas distribui o dobro do volume equivalente a dois gasodutos de 4 polegadas.

Na verdade, é a física elementar que estabelece que o volume transportado de gás é proporcional à dimensão do quadrado do diâmetro. E qual o sentido de classificar gasodutos de diâmetro tão pequeno como “de transporte”?

Autor/Veículo: Eixos*
*Extraído do site: Fecombustíveis